quarta-feira, abril 30, 2025
ColunistaCultura

Um adeus a Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant’anna

Objetos do morto
Os objetos sobrevivem ao morto:
os sapatos,
o relógio,
os óculos
sobrevivem
ao corpo
e solitários restam
sem conforto.

Alguns deles, como os livros,
Ficam com o destino torto.

Parecem filhos deserdados
ou folhas secas no horto.
As joias perdem o brilho
embora em outro rosto.

Não deveriam
deixar pelo mundo
espalhados
os objetos órfãos do morto,
pois eles são, na verdade, fragmentos
de um corpo. (Affonso Romano de Sant’anna)

 

Os poetas poderiam viver eternamente. Pensei afirmativamente. Não deveriam deixar este plano existencial. Continuei divagando. Eu fico assim, reflexivo, sempre que um escritor se vai. – Mas, Charles, os escritores são imortais! – Pensei comigo, como se fossem as vozes dos amigos Célio Cordeiro, ou Ernane Reis, imortais da Academia Divinopolitana de Letras. – É que a gente quer mais do poeta, meus amigos. – Respondi. Fica um vazio. A fonte criadora se vai. E aqui são duas fontes. Um casal de belos escritores: Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant’anna.

Tive o prazer de conhecer o Affonso Romano em uma palestra na Faculdade Pitágoras em Divinópolis, na época em que estudava na UEMG. Auditório lotado, e aquele senhor magro e alto, com uma voz potente, dissertando sobre a criação poética, sobre a sua trajetória, sobre tudo o que a inspiração pedisse. Ele era dono da palavra. Todos atentos e satisfeitos. Generosamente dividiu o tempo e a prosa conosco. Tomei coragem e perguntei se ele estava ciente do poder que as palavras deles – os poetas – tinham sobre nós os leitores. Aproveitei e citei a influência que a poesia de Adélia Prado tivera em minha vida, já que estava no último período do curso de Letras. Isto tudo em 2012. Conspiração dos deuses da literatura? Será?

Antes que tivesse tempo de responder, fez-se um burburinho na plateia. Ele olhou para cima, a porta se abriu. Era Adélia Prado chegando, um pouco atrasada, mas justificando que precisara passar na casa de um dos filhos para saudar uma netinha que estava aniversariando. – Aproveite e faça esta pergunta a sua musa inspiradora. – O poeta pediu-me com elegância peculiar. Ela respondeu. Ele respondeu também. Eu flutuava. Sonhei com este dia durante muito tempo.


Enquanto o respirar

O amor morreu

diz quem não sabe amar,

morreu a arte

o romance se foi

o autor está defunto.

Aninham-se os coveiros nas suas frases

enquanto o respirar das coisas mortas

ergue sereno o peito do mundo. (Marina Colasanti)

Marina Colasanti não nasceu no Brasil. Assim como Clarice Lispector, veio para cá   muito nova para brindar-nos com a sua genialidade literária. E em um país com uma literatura que privilegiava, na sua integralidade, os homens, elas se impuseram e deram voz a outras escritoras talentosas. Dona de uma versatilidade inata, ela escrevia contos, poemas, navegava entre a literatura infantil e infantojuvenil. Recebeu, com justiça, o almejado prêmio Jabuti, dentre outras honrarias. Casou-se com Affonso Romano. Viveram um relacionamento poético aqui na Terra de mais de meio século. Uma intensidade literária que levaram para outra dimensão. Ela se despediu no dia 28/01/2025. Ele, que ainda tinha algumas prosas para ajustar com ela, foi encontra-la no dia 04/03/2025.Fecharam-se duas bibliotecas. Mas o que consola é que os seus livros passeiam livres nas mãos de quem gosta, e a poesia reina soberana. Ainda bem.